Júlia Motta
Da janela de casa, no subúrbio do Rio de Janeiro, o Morro da Mangueira. A vista que a professora aposentada Lúcia Laguna, de 65 anos, cresceu vendo tornou-se sua maior fonte de inspiração.
— Comecei pintando paisagens e um dia percebi que queria fazer a minha paisagem. A Linha Vermelha, a Mangueira, o trem — conta Lúcia, que descobriu a pintura há dez anos, quando se aposentou das aulas de língua portuguesa. — Eu queria preencher o tempo e encontrei a arte. Com a série “Entre a Linha Vermelha e a Linha Amarela” mostro esta geometria desarrumada da favela.
Ela é a mais velha de um grupo de 78 artistas do Brasil inteiro, selecionados pelo projeto Rumos Artes Visuais 2005/2006 do Itaú Cultural, que chega à cidade na exposição “Rumos artes visuais — Paradoxos do Brasil”, a partir de quinta-feira, no Paço Imperial.
Durante três meses, cinco curadoras — Lisette Lagnado, Luisa Duarte, Marisa Mokarzel, Cristiana Tejo e Aracy Amaral — viajaram o país em busca de novos talentos no campo das artes plásticas. O grupo passou por todas as capitais e algumas cidades do interior, visitando ateliês e fazendo palestras.
— O projeto recebeu 1.342 inscrições e tínhamos que selecionar em torno de 60 artistas. O que foi muito difícil, pela qualidade dos trabalhos — conta Aracy, coordenadora do projeto que acabou tendo que ampliar o número de expositores para 78. — Descobrimos capitais carentes até em bibliografia sobre história da arte. Queremos oferecer a possibilidade de uma continuidade. A partir de 2007 vamos ministrar cursos sobre o tema e dar esta bibliografia para cidades como Teresina, Marabá, Rio Branco e Porto Velho.
O resultado do garimpo feito pelas curadoras está nos 143 trabalhos inéditos da mostra: são pinturas, fotografias, instalações, vídeos, site specifics, intervenções urbanas e performances.
— É um intercâmbio que se impõe a estes artistas. O que podemos observar é que muitos destes novos talentos têm uma certa poética intimista. Há uma grande solidão que perpassa por vários trabalhos. Uma marca é um ponto de vista mais do que estético, uma preocupação social-antropológica. Muitos artistas trabalham com restos da sociedade e com temas ligados à ecologia — observa a coordenadora.
A carioca Luisa Duarte, de 26 anos, é a mais jovem curadora do “Rumos” e foi responsável por visitar as cidades do Rio de Janeiro e de Fortaleza, e os estados Minas Gerais, Espírito Santo, Alagoas e Sergipe.
— Em Fortaleza encontrei uma cena jovem articulada. Já em Maceió há uma ausência de artistas em formação. Não há escolas de artes plásticas na cidade. O projeto ajuda na formação de um circuito de artes, com nomes que o meio não conhecia e uma variedade de propostas e linguagens. A questão da cidadania e do meio urbano está muito presente na exposição — conta Luisa.
No outro extremo do “Rumos” está o paraense Gabriel dos Reis, de 14 anos. Cursando a terceira série do Ensino Fundamental, o morador de Marabá descobriu a pintura aos 8 anos, quando seu pai o levou a estudar pintura porque era uma criança muito agitada. Hoje ele vê na arte uma profissão e já fez uma exposição individual.
— Ele tem um relacionamento tão puro e particular com a arte que quando acabaram as aulas o convidei para continuar a trabalhar comigo. É como se ele descobrisse na arte um portão para a vida — emociona-se o professor do pintor, Antônio Botelho, que explica que o trabalho de Gabriel começa pela fabricação das tintas.
— Ele utiliza cores próprias. São tons únicos e fortes. Nunca usa o pastel, por exemplo — conta Botelho.
De norte a sul, projeto revela nomes
De Mato Grosso do Sul é possível conferir a polêmica obra de Evandro Prado, de 20 anos. Da série “Habemus cocam”, ele montou uma estante com objetos de contrastes do mundo capitalista com o religioso e já prepara a próxima, sobre as eleições no país.
— É uma crítica à sociedade, que passa a trocar seus valores numa sagração ao consumo — diz Prado, que fez sua primeira exposição aos 15 anos e está no último período da faculdade de artes visuais na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Com a exposição de pinturas “O sagrado e o capital”, em cartaz no Museu de Arte Contemporânea da cidade, o artista atualmente está no meio de uma polêmica: recebeu um abaixo-assinado com 3.500 assinaturas e críticas da Arquidiocese de Campo Grande. A reação se deveu à obra “Nossa Senhora Coca-Cola”, onde uma garrafa do refrigerante faz as vezes do corpo de Nossa Senhora Aparecida.
Para quem curte site specific, a artista de Porto Alegre Denise Gadelha, de 25 anos, preparou imagens do trajeto do Paço Imperial a Niterói por terra, mar e ar. “Estudo para perspectivas espaço-temporais” é um painel estreito, de quase dois metros de altura, com 18 aerofotos e imagens do percurso a pé cronometradas.
— Quero que as pessoas vejam a mesma coisa por dois pontos de vista diferentes. É como se fosse um cinema fotografado com imagens cronometradas do percurso — explica Denise.
Esta é a terceira edição do “Rumos artes visuais — Paradoxos do Brasil”, que já passou por São Paulo e segue, depois do Rio, para Belém, Fortaleza, Goiânia e Florianópolis. Com a mostra no Paço Imperial, estão sendo lançados um catálogo e um DVD com entrevistas dos artistas.