"Habemus papam", mas nem tanto...

Jornal Correio do Estado, 5 de Junho de 2006

Dante Filho

Não fui ver a exposição de Evandro Prado, no Marco, intitulada "Habemus Cocam", cujas obras foram selecionadas para o 6º Salão Nacional de Arte de Goiás, e, dias atrás, andou provocando polêmica por conta da reação de grupos religiosos que viram nas telas um desrespeito àqueles que professam fé em cristo, ajoelham aos pés de padres e papam hóstia com alegria e sofreguidão.

As fotos de alguns quadros expostos me foram enviadas pela Internet. Não gosto de avaliar obras de arte olhando apenas suas reproduções fotográficas. Tirando os trabalhos consagrados, só mesmo estando frente a frente para analisar a técnica, a qualidade do material utilizado, a narrativa emblemática do artista na composição do quadro, sua força imagética e sua proposta estética.

Neste aspecto, só posso dizer que a pop-art de Prado inscreve-se no convencionalismo da arte figurativa moderna, apenas tematizando imagens sagradas de maneira irônica e divertida, incorporando símbolos religiosos no estuário dos conceitos das mercadorias e do consumismo hedonista dos nossos tempos.

Além disso, os trabalhos fazem uma releitura própria da tradição estética, brincando com algumas obras famosas, como se quisessem dessacralizar a arte fazendo comédia com cenas sacras consagradas. Tudo dentro do previsto. Mesmo assim, me pareceu um trabalho bonito e instigante.

Neste jogo de representação dentro da representação, o trabalho de Evandro pode até ser interessante.

Se as artes plásticas ainda estivessem no meu foco de interesse – e museus não me causassem tanta modorra – juro que daria um pulo no Marco para conferir as telas de perto.

Mas o que me entedia é o lance do "faça sucesso provocando escândalo" que está embalando a carreira de Evandro.

Talvez sua produção mereça mesmo toda a consideração do mundo, mas este movimento de fundamentalistas (capitaneado pelo vereador Paulo Siufi) que se arroga detentor do puritanismo cristão incomoda até quem tem uma visão complacente da religiosidade de cada um.

Não vi nenhuma agressão ou desrepeito à crença cristã como alguns estão alegando. Se fosse para levar as coisas para este lado, católicos e protestantes deviam ter feito passeata em frente aos cinemas quando Mell Gibson levou às telas aquela cretinice medonha sob o título de "A Paixão de Cristo", que, na minha modesta opinião, foi a maior propaganda de ketchup já feita na história contemporânea.

Ninguém reclamou. Ao contrário: milhares de fiéis lotaram as salas para derramar lágrimas copiosas e patéticas, sem perceber o merchandising embutido numa produção que, na verdade, por exagerar na paródia, ganhou status de comédia de horror.

Diante daquele filme, a exposição de Evandro é pueril. Ali temos a beleza transfigurante numa revisão conceitural da nova idéia religiosa de que tudo pode ser consumido na cloaca da pós-modernidade.

No dia que aqueles religiosos mais fervorosos compreenderem que a fé é simplesmente uma categoria da existência que está encerrada em propósitos estritamente individuais, e que toda a ação coletiva em torno da religiosidade tende ao fanatismo mais abjeto e perigoso, nada que se faça para bagunçar o coreto do sistema de crenças terá qualquer relevância.

Enquanto malucos de todos os gêneros acreditarem que serão salvos no reino dos céus por contestarem furiosamente uma charge cretina de Maomé, um quadro chocante, um filme maluco, um livro herético ou espetáculo teatral ateu, sempre existirá um espírito de porco acreditando na possibilidade de libertação pela subversão das idéias postas e consagradas.

O homem é um ser insatisfeito por natureza. Somos o único animal que consegue rir de suas próprias misérias. Já vivemos um tempo em que contestar o sagrado era o caminho mais rápido para ser transformado em churrasco na fogueira da intolerância.

Agora, nestes tempos trêfegos o fogo que maltrata um artista é a indiferença. Ou nos rendemos aos homens pela beleza de sua criação, ou, em último caso, pela repulsa que provoca suas idéias e propostas estéticas. Proibir, censurar, matar e esfolar é atitude que além de desumanizar aqueles que reagem negativamente à arte, transforma seus protagonistas em asnos. Nada mais.