Dossiê 97: para jamais esquecer (2019)

por Alexandre Bispo

Presidenta da República por dois mandatos consecutivos, Dilma Rousseff começou a aparecer sistematicamente na mídia de massa quando, em 2010, se tornou candidata ao maior cargo político no Brasil. Desde então, o artista visual Evandro Prado, cujo interesse crítico por instituições como grupos religiosos, polícia e imprensa, decidiu arquivar, constituindo um dossiê com as capas de revistas, nas quais Dilma é protagonista, do início da campanha eleitoral até sua deposição ilegal em 2016. Movido pelo incômodo pessoal diante de grande parte dessas capas que, articulando principalmente imagens fotográficas e frases de efeito com o objetivo de subestimá-la: “Você acha que sou um poste?” indagava uma publicação confundindo as noções de pessoa e coisa, o artista experimentou saber como essas imagens se comportariam se fossem pinturas. Nascia assim “O processo/ 2010-2016” (2017) série-dossiê composta por 97 pinturas a óleo nas dimensões 40 x 30 cm. O tema é a imagem e a imaginação social da grande mídia em torno da representação política da primeira mulher a presidir um país de dimensões continentais, com alta concentração de renda, longa história de genocídios contra indígenas e negros e ódio às classes pobres.

O que a instalação “Tem que manter isso aí, viu?” que reúne a série-dossiê de pinturas, mais um outdoor, no qual se lê a frase dita pelo “presidente” que sucedeu Dilma, pode nos ensinar sobre a história recente do Brasil? O que ela nos diz sobre como a imprensa se posicionou após a vitória de Dilma nas eleições de 2014? Lembremos como essa mesma mídia parcial captura e define novos usos para as cores da bandeira com a exibição pública do mascote do golpe - pato amarelo (atualizado para sapo verde) -, orienta o uso de camisetas da seleção brasileira de futebol, elogia estampas militares e, simultaneamente, segrega a cor vermelha, opções estéticas que materializam violências físicas e simbólicas contra Dilma. Em “A presidente encurralada” combinam-se apropriações de elementos visuais do construtivismo russo com o punho cerrado do Partido dos Panteras Negras, compostas para forjar a ideia de que o povo acordou. Bater panelas contra Dilma é uma das reações da chamada “classe média” naquele momento, ao fato do trabalho domestico – exercido essencialmente por mulheres – passar a ser regulado pela Consolidação das Leis do Trabalho.

Com desconcertante objetividade, Evandro Prado cria uma galeria expressiva e perturbadora e nos desafia a jamais esquecer as interpretações veiculadas por cada capa semanalmente expostas nas bancas de jornais e revistas. Seu empenho com a obra é evitar que a sucessão de eventos que derrubaram Dilma caia na vala comum do esquecimento, em função de novas manipulações dos eventos passados. Nesse ponto ele não está só. O coletivo oitentaedois editou e lançou em apenas 12 dias depois do golpe, o fanzine “Câmara dos deputados – Sessão 091 de 17/04/2016. Deliberativa Extraordinária” contribuindo para que a galeria de outros rostos, nomes, filiação partidária e discursos transcritos de cada político no impedimento de Dilma Rousseff não seja apagado da memória coletiva (1). Em 2018 a cineasta Maria Augusta Ramos lançou o filme “O processo”. Juntas, essas obras insistirão sempre em nos lembrar o que foi a perseguição à presidenta que, afinal, não cometeu crime de responsabilidade.

Se em 2010 a história pregressa da então candidata é reinterpretada e exposta em tom de revelação: “O passado de Dilma”, quando sua imagem serve para alertar os (e)leitores contra os perigos de se eleger uma mulher que confrontou a ordem política e social autoritária em favor da democracia (2), nota-se que para o Brasil de 2010, a manipulação não convence. Dilma foi eleita pela primeira vez: governou, apesar de tantas capas continuarem a atacá-la e, novamente no poder, mais uma, entre tantas outras capas continuaram a desqualificá-la: “As explosões nervosas de Dilma”. A essa capa, imagem agente na destruição de sua reputação como pessoa pública, se seguiriam outras: “Ela resiste?”. Vaticinavam.

Na transposição para a tela, Evandro Prado, além de aumentar o tamanho das capas, mantém o nome das revistas e suas chamadas a respeito da “Mulher e presidente” que rompeu com as expectativas tradicionais de gênero, daí a reação machista de capas como “O poder e o saber” que enunciam: ela tem o poder, mas quem sabe o que e como fazer são os homens. “E agora, Dilma?” Interpelam. A ideia de que ela não deve fazer parte da macropolítica brasileira aparece em “Fora do Baralho”, quando, ao tratá-la como uma coisa indicam que ela não pode presidir nada na arena pública. A última pintura da série-dossiê, mostra Dilma como uma mulher desconhecida. Não há frase.

Ao tratar cada uma destas imagens como pintura, retirando-as da efemeridade comum ao periodismo impresso e descartável depois do uso, Evandro Prado reconstrói a imaginação midiática sobre essa mulher específica. Nesse sentido, não se trata de apresentá-la, como fizeram as capas, mas, a partir de uma postura artística engajada, organizar um dossiê e representá-la sob suporte mais durável – tela e tinta a óleo – para que jamais esqueçamos a parcialidade com que imagens e frases de efeito constroem e destroem reputações. Os efeitos dessa destruição estão aí, para quem quer possa interessar.


Alexandre Bispo

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1: http://www.oitentaedois.com/lab/impeachment/ Acesso em 29/04/2019 2: Departamento de Ordem Política e Social que pertence ao Arquivo Público do Estado de São Paulo. http://www.arquivoestado.sp.gov.br/site/acervo/repositorio_digital/deops_ficha Acesso em 30/04/2019.