Evandro Prado: a vitalidade da pintura (2005)

por Rafael Maldonado

Esse texto pretende salientar alguns aspectos observados na série de pinturas Habemos Cocam, de Evandro Prado, levando em conta as percepções evidentes ao se avaliar a produção de qualquer jovem artista que inicia a construção de uma trajetória; momento esse que a crítica de arte Aracy Amaral define como “a primeira idade”.

Tenho acompanhado atentamente o desenrolar da obra de Evandro Prado, avaliando cada passo, cada conquista e o gradativo amadurecimento de uma produção que revela um artista inquieto em suas pesquisas e curioso nas investigações.

Nesse princípio de percurso, Evandro apresenta um discurso consistente no desenvolvimento dos trabalhos, tornando claro que a compreensão dos conceitos que sustentam a concepção das séries - assuntos que o artista é capaz de comentar com bastante desenvoltura - é o fio condutor das leituras possíveis dos temas abordados tanto nas pinturas quanto nos objetos e instalações.

Na série Habemos Cocam há uma interessante relação entre conceito e plasticidade. O conjunto de pinturas, que recebe um tratamento de representação realista, assume a visualidade de comunicação da linguagem publicitária, onde as formas são pensadas estrategicamente para atrair a nossa atenção. A marca Coca-Cola, que para o artista é um dos símbolos do consumismo globalizado, surge como elemento que dá unidade à obra, fazendo uso de maneira irônica das variações desenvolvidas pela marca.

A crítica ao modo de produção capitalista, onde a propaganda é ferramenta fundamental para a venda e o consumo em massa de produtos, é uma das questões importantes presentes na série. Para o artista “o capitalismo é inversão de valores, o mundo colorido, alegre e brilhante que ele vende, na verdade não existe”. Nesse caso, o contraponto fica por conta das referências ao sistema político econômico cubano onde a propaganda tem efeito contrário: lá ela tenta inibir o consumo. Evandro é contundente ao comentar que para Fidel Castro “a publicidade comercial semeia sonhos, ilusões e o desejo de consumo impossível”.

Isso ajuda a entender as relações apresentadas na pintura que retrata a imagem de Fidel com a frase Cuba Libre no promueve el consumismo. Assim como numa tela de forma circular que imita os painéis luminosos da marca, onde a silhueta da garrafa de coca cola é substituída pela silhueta do rosto de Che Guevara, ilustrando outra frase citada pelo jovem artista: “Che é a coca-cola do comunismo”. Então, podemos perceber que no mundo globalizado os significados perdem os verdadeiros sentidos, sendo transformados em produtos de uma moda banal.

Seu repertório visual é composto ainda por imagens sacras que se relacionam inusitadamente com o esse incontestável símbolo de consumo de massa. Faz menção ao que Frei Betto chama de “religião de consumo”, outro conceito que sustenta as idéias abordadas na série. Aqui ícones católicos se fundem com a marca Coca-Cola, criando situações que passam pela diversão e pelo estranhamento. Essas marcas constituem uma nova religião?

A pintura Habemus Cocam, que dá nome à série, retrata uma cena do funeral do Papa João Paulo II que aparece com uma garrafa de coca-cola nas mãos. Como entender a ousada ligação aqui proposta? E se ao final do ritual de eleição de um novo Papa o Vaticano proclama Habemos Papam, Evandro anuncia e critica um capitalismo que corrompe, que a tudo envolve e controla. Mostra que a religião não foge a tudo isso e ressalta a igreja católica como um dos grandes símbolos do poder, com alcance em todas as áreas do conhecimento.

Em algumas pinturas temos uma ousada reinvenção de valores, como em “Sagrada Coca-Cola”, onde a lata de refrigerante toma o lugar do coração sagrado, aparecendo da mesma forma em “Sagrada Coca-Cola de Jesus” e “Sagrada Coca-Cola de Maria”. Em “Nossa Senhora Coca-Cola” uma garrafa é coberta com o mesmo manto azul da santa cristã. Um sacrilégio? Uma heresia? Não, apenas possibilidades estéticas de um novo campo imagético.

Assim, continua buscando interlocução com obras e artistas diversos, como na reprodução de detalhes da pintura de Michelangelo, onde o Cristo da cena do Juízo final aparece aqui repudiando esse consumismo desenfreado; embora a contradição apareça numa apropriação de Salvador Dalí, para recriar um “Cristo Cola”. E em Picasso, busca no dramatismo das figuras da obra Guernica, um contraste para as frases de otimismo impressas nas embalagens dos refrigerantes: “viva o que é bom”, “mais importante que a beleza é o conteúdo”.

Dessa forma Evandro Prado vai externando suas idéias e inquietações. Faz uso da arte para subverter aquilo que consideramos como “politicamente correto”. Um jovem artista que, com uma obra efervescente, plena de vitalidade, procura sempre em seu caminho mais questionar do que dar respostas.


Rafael Maldonado

Curador do Museu de Arte Contemporânea de MS

Outubro 2005