Evandro Prado: o sagrado dessacralizado (2008)

por Divino Sobral

É das necessidades e insatisfações espirituais e materiais da cultura ocidental cristã que trata a obra de Evandro Prado. Nela questões advindas da religião, da política e do mercado cruzam-se na tessitura de um discurso plástico que reúne elementos extraídos da tradição a outros retirados do contexto hodierno.

Nos trabalhos criados pelo artista a manipulação de imagens de segunda geração ocorre com a apropriação de ícones do catolicismo popular brasileiro, e com o questionamento de seus estatutos iconográfico e de significação. As representações de personagens sagradas em embalagens e em meios os mais diversos, possuem algo de kitsch, de banal e de descartável, resultado de suas inserções no sistema das imagens de consumo da sociedade atual. Walter Benjamin coloca que a reprodução em alta escala acarreta a extração da imagem da esfera sagrada e sua conseqüente introdução numa ordem expositiva onde acontece a perda da “aura”, do elemento único e venerável contido na imagem. São essas representações do sagrado sem “aura”, dessacralizado pela multiplicação, que Prado manipula com sentido crítico, operando com interseções entre a fé e a dúvida, a candura e a violência, o gozo e a dor, a vida e a morte.

Ícones religiosos produzidos, como qualquer outro produto, para o consumo massificado de uma sociedade que aspira a aquisição de valores espirituais e bens materiais capazes de amenizar a sua crise subjetiva. Entretanto, tal crise é irresoluta à medida que a subjetividade atual encontra-se manipulada pelo processo de consumo simbólico gerenciado pela indústria e pelos aparelhos publicitários. Apesar da multiplicação dessas imagens e dos discursos que as empregam, o processo cultural da sociedade contemporânea revela a ausência de lugar para o sagrado – que traz em si a noção de eterno –, pois nela tudo é descartável, efêmero e principalmente insatisfatório.

Nas obras da série “Estandartes”, imagens dos santos católicos são desconstruídas e reconstruídas com outros materiais e procedimentos. Sobre os suportes de tecidos diversos, objetos como terços, medalhas devocionais, munição para armas, pintura e oxidação, costura e bordado são empregados na reformulação dos ícones que convivem com armas brancas e de fogo, com objetos de aprisionamento e de tortura e com elementos decorativos que aludem aos oratórios e altares barrocos. Um crucifixo ladeado por revólver e metralhadora, Nossa Senhora na presença de uma espada, São Jorge acorrentado, são imagens que todos podem reconhecer, mas também estranhar, uma vez que são apresentadas com elementos que não constituem suas iconografias tradicionais. A adjunção destes elementos anuncia o estado de crise da sociedade atual, onde a insegurança, a fragilidade, o medo e o terror sitiam o cotidiano, conferindo à existência um sentido muito fugaz.

Há nestas obras algo remanescente das Vanitas. Este gênero de natureza morta alegórica e de conteúdo religioso e mórbido que foi desenvolvido, sobretudo, durante o século XVII como instrumento da revisão espiritual da época. As Vanitas alertam para a efemeridade da vida, para o perigo das vaidades e ostentações cultuadas pela sociedade, apontam para a eminência da morte. Os crânios presentes nas Vanitas se exibem como a imagem do fim, assim como as armas apresentadas por Prado se mostram como figuras da morte próxima. Contudo, não mais a morte natural, e sim a morte provocada.

A representação de elementos referentes à morte e à dor sempre estive presente na iconografia católica, especialmente nos ícones dos santos mártires, nos quais o corpo em chagas, sacrificado em nome da fé, impacta pelo que possui de violento na formação da culpabilidade humana. Mas na obra de Prado, diante da presença dos símbolos da violência e da morte, surge o questionamento sobre o pecado e o sentimento de culpa como construções ideológicas que violentam subjetivamente a cultura ocidental, e a faz ainda mais despreparada para lidar com a morte. A representação do sagrado na cultura cristã marcada pelas imagens da violência e da morte é traumática no imaginário ocidental.

Os objetos da série “Alegorias Proféticas” são como oratórios, pequenas caixas vedadas com vidro e que guardam os tecidos com as aplicações das imagens de santos e dos ornatos da arte sacra. Sobre o vidro são transcritos trechos do Apocalipse, o último livro profético da Bíblia que revela a luta final entre o bem e o mal, o julgamento da humanidade e a ressurreição dos mortos. Novamente a alusão às Vanitas se confirma pela conexão entre o visível e o legível, pelo uso de citações proféticas, pela retórica ora ameaçadora ora esperançosa do texto extraído das “Sagradas Escrituras”.

Por fim, desejo chamar a atenção para o fato de que a presença da iconografia católica na cultura visual brasileira tem uma importância capital. Para Gilberto Freyre, o catolicismo atuou na formação da sociedade brasileira como um cimento que logrou amalgamar todas as diferenças existentes no Brasil. Sobretudo para os artistas originados no interior do país essa referência é muito forte, seja ela vinculada à iconografia erudita dos altares das igrejas seja à interpretação popular, e se confirma nas obras do mato-grossense João Sebastião, dos goianos Siron franco e Ana Maria Pacheco, do mineiro Farnese de Andrade, e dos cearenses Leonilson e Efraim Almeida.

Com os trabalhos apresentados nesta exposição Evandro Prado desdobra sua pesquisa sobre os ícones do catolicismo, atualizando um gênero da tradição pictórica ocidental que estava esquecido e o contextualizando dentro do quadro de angústias e ansiedades da cultura contemporânea.


Divino Sobral

Artista plástico e curador independente

Goiânia, 9 de março de 2008