Fanatismo a serviço da arte?! (2006)

por Almir Farias da Cunha e Neiva Valadares

Estranho título, afinal, o mais provável é a relação inversa. O artista campo-grandense Evandro Prado, apesar de talentoso era apenas um jovem estudante desconhecido até um mês atrás. Autor de obras que partem das reflexões de Frei Beto, sobre a religião do consumo, mostrou como um refrigerante é alçado a símbolo de adoração. Tudo teria passado em brancas nuvens e ele não teria ganho seus quinze minutos de fama, se não fosse a reação de um vereador da capital (procurando o que fazer, dada a conhecida ociosidade do parlamento municipal de Campo Grande) que propagandeou violentamente a exposição das obras, estimulando a intolerância de beatos e dirigentes religiosos. A ação do vereador foi claramente oportunista, mas por outro lado, é preciso reconhecer que a arte tem uma incrível capacidade de provocar reações nos seres humanos.

Previsivelmente, sempre acontece algo imprevisto. Cristina Costa, Doutora em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia de São Paulo, apresenta uma explicação interessante ao defini-la em seu livro Questões de Arte: “Exige eco e comunicação, exige diálogo e controvérsia”. Realmente, faz sentido. O que seria da Semana de Arte Moderna, na cosmopolita São Paulo, de 1922, se não fosse a controvérsia? O evento poderia ter passado em brancas nuvens.

Vejamos alguns outros exemplos. O consagrado pintor francês Henri Matisse. No início, o de sempre, um jovem talentoso e desconhecido. Estudou os grandes mestres, experimentou diversas escolas, entre elas o pontilhismo e acabou inaugurando, a própria revelia, um novo estilo, o fauvismo. O nome foi dado por um crítico que comparou Matisse e outros artistas a “fauves”, feras em francês, de forma nada elogiosa. Tudo isto, devido ao uso intenso de cores e matizes contrastantes. Pintou um quadro de sua esposa, A Senhora Matisse (A risca verde) e provocou escândalo. Pronto, as regras estavam quebradas.

O Evandro, a exemplo dos casos mencionados também quebrou regras e ganhou notoriedade, embora afirme que não fosse esta a sua intenção. É no enfrentamento da adversidade que se cresce. O que é inaceitável é a prática da intolerância, principalmente oriunda de dirigentes políticos e religiosos. Quem assiste às sessões da Câmara campo-grandense sabe o quanto a pauta é esvaziada, o quanto a discussão é empobrecida. Para sorte dos vereadores a transmissão não chega à todos os lares, pois as sessões são transmitidas por canal de televisão fechado. Eles perdem um tempo em proposições como “cria o dia disso, cria o dia daquilo...” e a cidade, que está entre as maiores do país (é a vigésima terceira em população) transborda em problemas sérios, que vão do trânsito mal planejado a uma rodoviária que causa vergonha.

Cristina Costa registrou em seu livro também, que o pintor francês surrealista René Magritte, pintou uma mulher em cor verde, o que acabou por despertar o comentário de que não existe mulher verde. Magritte respondeu que aquilo não era uma mulher e sim uma pintura. Para demonstrar a relação entre arte e realidade, ele pintou um cachimbo e escreveu “Ceci n’est pas une pipe”, ou seja, “isto não é um cachimbo”.

A história da humanidade registra incontáveis situações em que a arte foi empregada à serviço do poder político, do poder econômico e religioso. Mas ela também pode fazer o caminho inverso e não há intolerância que consiga detê-la.


Almir Farias da Cunha e Neiva Valadares

Servidor público/Professora de Artes

22 de Junho de 2006 - Jornal "O Estado"